Crónica: Reinserção Social
Crónicas do Clube para a UNESCO Livraria + Kairos
Reinserção Social
A inserção e reinserção social são processos decisivos para a construção de sociedades democráticas, justas e sustentáveis, centradas na dignidade humana e nos direitos fundamentais. Enquanto a inserção social visa integrar indivíduos em risco ou vulnerabilidade nas dinâmicas sociais, económicas e culturais, a reinserção social concentra-se na recuperação daqueles que foram afastados ou marginalizados — seja por encarceramento, dependências, pobreza extrema ou situação de sem-abrigo. Estes processos são complementares e essenciais para o desenvolvimento social, económico e cultural sustentável. De acordo com a perspetiva do desenvolvimento sustentável, inserção e reinserção social assumem um papel transversal, alinhando-se aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, sobretudo na erradicação da pobreza, na redução das desigualdades, na promoção da saúde e da educação inclusiva, na igualdade de género e na criação de oportunidades de trabalho digno. Portugal, inserido na União Europeia e na comunidade internacional, tem adaptado as suas políticas sociais à evolução dos contextos sociais, privilegiando estratégias integradas, inovadoras e participativas.
Conceitualmente, a inserção social é o processo que assegura a inclusão efetiva de indivíduos vulneráveis, garantindo o acesso universal a direitos, à participação comunitária e ao apoio social necessário para a autonomia económica e social. A reinserção social é vista como um processo de vinculação ativa com o meio social, após um período de exclusão ou crise, visando a reconstrução de uma identidade social positiva, de relações interpessoais e da autonomia pessoal e económica. Estes processos fundamentam-se nos princípios universais dos direitos humanos, conforme explicitado em documentos internacionais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Estes valores éticos devem sustentar todas as políticas e práticas de inclusão, visando combater a exclusão e a estigmatização.
No âmbito preventivo, a inserção social prioriza a atuação sobre causas estruturais da exclusão social, como a precariedade habitacional, a pobreza, o desemprego, a deficiência e a discriminação. Programas de combate ao abandono escolar, capacitação profissional regionalizada, acesso à saúde e à educação universal e promoção de redes de apoio comunitário são práticas eficazes e recomendadas. À escala internacional, destaca-se o modelo “Housing First”, que assegura a disponibilização imediata de habitação permanente a pessoas em situação de sem-abrigo, seguida do apoio social integrado, tendo sido implementado com sucesso em Portugal.
A educação, enquanto instrumento prévio à prevenção da exclusão, tem um papel central na promoção de valores de inclusão, cidadania e respeito pela diversidade, indispensáveis para construir comunidades resilientes e inclusivas. Do lado curativo, a reinserção social requer uma abordagem holística e personalizada, que englobe aspetos psicológicos, sociais, económicos e de saúde. A habitação transitória é componente fundamental para assegurar estabilidade, permitindo o acesso continuado a cuidados médicos e sociais. A inclusão laboral surge como o eixo central para a autonomia e participação social, apoiada por programas de formação adaptados, apoios à empregabilidade, combate à discriminação e estratégia para reduzir vulnerabilidades psicossociais, nomeadamente a saúde mental.
Estas ações encontram correspondência em vários ODS, como o 1 (erradicação da pobreza), 3 (saúde e bem-estar), 4 (educação), 5 (igualdade de género), 8 (trabalho) e 10 (redução das desigualdades). O debate atual contempla a proposta de um ODS 19, dedicado especificamente à inclusão social e laboral dos grupos vulneráveis, reconhecendo a complexidade das suas necessidades e o papel fundamental que desempenham no desenvolvimento sustentável.
A eficácia das políticas de inserção e reinserção exige ainda uma estrutura institucional organizada e multidisciplinar que articule os vários setores (saúde, educação, habitação, trabalho e justiça), promovendo a participação social e a personalização dos apoios, com uma forte componente comunitária e de combate ao estigma. A formação contínua de profissionais e a avaliação rigorosa por indicadores alinhados com os ODS permitem melhorar a transparência, a eficiência e o impacto destas políticas.
Portugal apresenta um percurso de transformação nas políticas sociais, desde abordagens paternalistas e assistencialistas, mas também controladoras e punitivas, preponderantes durante o Estado Novo, até ao reconhecimento constitucional dos direitos sociais e a adoção progressiva de modelos integrados centrados na dignidade humana, implementadas após o 25 de Abril de 1974. A recentemente implementada Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo (ENIPSSA) é um exemplo concreto desses avanços. Contudo, o aumento da população em situação de sem-abrigo — que duplicou nos últimos anos, passando de 6.044 em 2018 para 13.128 em 2023 — continua a representar um desafio maior, exigindo medidas abrangentes e continuadas. Em 2025, o Rendimento Social de Inserção (RSI) foi atribuído a cerca de 174.658 pessoas, apesar de uma ligeira redução face ao ano anterior e do agravamento das condições sociais.
O país dispõe de recursos importantes, como o inquérito do ICS-ULisboa publicado sob forma de livro “Sustentabilidade” (2020) e outras obras de referência que abordam a multidisciplinaridade e inovação nas políticas sociais. Projetos inovadores locais, como o “Barakat Leiria” e o “Eco Gira”, que combinam sustentabilidade ambiental com inclusão social, exemplificam abordagens promissoras.
No entanto, as condições políticas atuais, num contexto nacional e internacional, apresentam severas contradições. O avanço na implementação de políticas inclusivas esbarra em tendências individualistas, neoliberais e formas extremistas, fragilizando apoios sociais, direitos laborais e redes de proteção social. Em Portugal, a desregulação do trabalho, cortes em apoios sociais e políticas migratórias restritivas são sinais evidentes dessas dificuldades. Para responder a este quadro complexo é fundamental que se fortaleçam os movimentos sociais progressistas, a academia, o apoio à imigração mais segura, com contratos de trabalho e possibilidade de reunião familiar, o setor privado ético e a sociedade civil organizada, promovendo ações de pressão, inovação e mobilização coletiva. É crucial que haja uma ampliação da participação cidadã e uma comunicação social inclusiva que ultrapasse a fragmentação, promovendo um diálogo construtivo com vista a consensos sólidos.
A educação para os direitos humanos e a solidariedade social deve ser reforçada para consolidar um compromisso ético coletivo, enquanto os investimentos em monitorização e transparência garantirão a eficácia e a responsabilização das políticas públicas. Por fim, as atuais tensões políticas e sociais, apesar das dificuldades, podem gerar oportunidades para renovação democrática e fortalecimento dos direitos sociais, desde que haja um esforço articulado e contínuo de múltiplos atores. O caminho para atingir os ODS e a plena inserção social será complexo, com avanços e recuos, mas a necessidade inequívoca de transformação social justa e sustentável afirma a esperança numa mudança possível e necessária.
Isabel Prata Coelho
