Crónica: A via do design +

Crónicas do Clube para a UNESCO Livraria + Kairos


A via do design +

A tecnologia acompanha a humanidade desde os seus primórdios, sendo um elemento fundamental que molda a forma como nos relacionamos com o mundo, com nós próprios e entre nós. Contudo, para para além da sua dimensão técnica e prática, importa expandir o entendimento da tecnologia, integrando não só os aspectos científicos e técnicos, mas também a dimensão filosófica, poética, espiritual e ética, num quadro que transcenda o modelo civilizacional vigente e seja capaz de abraçar a diversidade cultural e a sustentabilidade planetária. Esta reflexão integrada permite pensar a tecnologia, não apenas como ferramenta utilitária, mas como expressão profunda das nossas relações com a natureza, a cultura e o futuro.

Desde as primeiras ferramentas de pedra e o domínio do fogo, a tecnologia foi condição essencial para a sobrevivência da nossa espécie, permitindo ampliar o alcance das nossas capacidades e oferecer respostas concretas às necessidades básicas. Na atualidade, com uma população mundial que ultrapassa os oito mil milhões de pessoas, a importância da tecnologia torna-se ainda mais clara e indispensável. Sistemas agrícolas complexos, cuidados de saúde avançados, saneamento, transportes e comunicações são vitalmente necessários para garantir o bem-estar e a continuidade da vida em larga escala. Porém, a dependência das tecnologias não deve implicar uma adesão acrítica ou indiscriminada ao progresso técnico, pois é essencial questionar quais as tecnologias que realmente desejamos e quais os valores que as devem formar, para que sirvam a dignidade humana e a vida no planeta de forma sustentável.

Uma ideia muitas vezes errada é considerar a simplicidade e a tecnologia como conceitos antagónicos. Na realidade, várias das tecnologias mais eficazes e transformadoras são, simultaneamente, simples, acessíveis e funcionais. Exemplos claros dessa "tecnologia apropriada" são sistemas tradicionais de irrigação, fogões que economizam combustível, filtros de água e outros dispositivos que, apesar da sua simplicidade técnica, respondem eficazmente a necessidades sociais e ambientais. Ao privilegiar soluções adaptadas às realidades locais, a tecnologia apropriada evita a sobrecomplexidade, o consumismo desenfreado e a dependência desnecessária de sistemas sofisticados que nem sempre são sustentáveis ou inclusivos. Sob este prisma, a simplicidade torna-se um atributo de uma tecnologia ética, humana e resiliente, capaz de promover a equidade e o cuidado com o meio ambiente.

Esta relação entre ciência, tecnologia, simplicidade e poesia pode ainda ser iluminada pela obra de António Gedeão, em que a ciência se une à beleza e ao encantamento do mundo, rejeitando a ideia de que o conhecimento científico destrói o imaginário poético. Gedeão representa uma síntese onde o olhar científico enriquece a experiência estética e existencial, propondo uma visão da tecnologia que não é fria nem desumana, mas uma maneira de captar a maravilha dos fenómenos naturais e humanos. A pesquisa científica e o desenvolvimento tecnológico, sob esta perspetiva, são parte integrante da dimensão humana do espanto e da admiração perante o cosmos.

Porém, esta harmonia não é uma verdade unívoca no universo literário e filosófico português. Fernando Pessoa, através dos seus heterónimos, representa a fragmentação e a multiplicidade da experiência humana e do conhecimento, criando vozes distintas e até opostas. Álvaro de Campos expressa o espanto intenso, a inquietação e a angústia típica

 da modernidade, com o seu ritmo acelerado e caótico, enquanto Alberto Caeiro, considerado mestre de todos, defende a simplicidade, a aceitação pura e direta da natureza tal como ela é, sem racionalizações ou complicações. A poesia de Caeiro é um convite a viver o instante e a realidade sensorial sem interpretar excessivamente, uma verdadeira sabedoria que contrasta com a complexidade angustiada de Campos.

Este contraste entre o espanto e a simplicidade desperta uma profunda reflexão sobre a nossa relação com a tecnologia e a modernidade. Num mundo caracterizado por uma sobredose de informação, inovação constante e fluxos acelerados, a simplicidade assume o papel de um porto e um fundamento para a criação de sentido, equilíbrio e sustentabilidade. Ultrapassar a fragmentação e promover uma síntese equilibrada entre estas forças é fundamental para enfrentar os desafios contemporâneos. Esta síntese não exige uniformizar as diferenças, mas antes fomentar um diálogo frutuoso entre a complexidade do mundo moderno e a clareza essencial da experiência natural, permitindo que ambas coexistam e se potenciem.

No plano prático, esta síntese encontra expressão na “tecnologia da simplicidade”, que se materializa sobretudo através do design. O design é um processo criativo e estratégico, capaz de transformar necessidades e desafios complexos em soluções acessíveis, funcionais, sustentáveis e éticas. Um design eficaz elimina o excesso e o desnecessário, valorizando a eficiência e a adequação ao contexto, promovendo tecnologias que não só resolvem problemas, mas também respeitam a diversidade cultural e ambiental. Apesar das suas raízes no paradigma tecnológico ocidental, o design contemporâneo tem vindo a afirmar-se como uma metodologia integradora, que respeita saberes locais, tradições ancestrais e dimensões espirituais, criando uma abordagem antropológica que conecta o micro e o macro, o individual e o global.

É exatamente nesta capacidade integradora que o design revela a sua força como metodologia antropológica: uma ferramenta que aceita e trabalha a complexidade da experiência humana em toda a sua diversidade, ao mesmo tempo que procura a simplicidade funcional e estética. O design, assim, pode ser encarado como a ponte entre a ciência e a técnica, a espiritualidade e a prática social, traduzindo uma visão ampliada da tecnologia que atende às múltiplas dimensões do existir humano.

Mas é ainda preciso ir além, ampliando a perspetiva para abarcar a crítica a um modelo civilizacional ocidental-industrial hegemónico que tem conduzido a tecnologia predominantemente para funções de crescimento económico e consumo expansivo, negligenciando as questões espirituais, éticas e culturais. Uma visão descentrada reconhece a pluralidade epistemológica e cultural, destacando que a tecnologia também emerge de saberes indígenas, tradicionais e comunitários, que valorizam a ligação harmoniosa entre o ser humano e o ambiente natural, assim como a dimensão espiritual e simbólica das técnicas. Esta diversidade tecnológica não é apenas uma questão de inclusão cultural, mas uma necessidade para construir um futuro sustentável onde o respeito pela natureza e pela vida simbólica sejam pilares estruturais.

Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU trazem ao centro deste debate uma abordagem sistémica e holística que visa garantir que a tecnologia contribua para a justiça social, a inclusão e a proteção ambiental. A inovação tecnológica entendida a partir dos ODS deve ser direcionada para assegurar o acesso igualitário, respeitar os direitos humanos e assumir um compromisso profundo com os limites planetários. Tecnologias regenerativas, que promovam economias circulares, restaurem os ecossistemas e valorizem a diversidade cultural e biológica, alinhando-se com princípios éticos e espirituais, são imperativos para a concretização destes objetivos globais.

A espiritualidade tecnológica, nesse contexto, surge como uma dimensão essencial que nos convida a uma prática consciente e ética da tecnologia. Mais do que meros instrumentos, os artefactos e sistemas tecnológicos são extensões das nossas intenções, desejos e valores. Reconhecer esta ligação é fundamental para cultivar o respeito pela vida e assumir a responsabilidade ética no modo como criamos e utilizamos tecnologia. Esta nova espiritualidade tecnológica implica uma relação de reverência e cuidado com a criação, que é fundamento para uma coexistência sustentável e digna entre seres humanos e o planeta.

Em síntese, a tecnologia, à luz desta visão integrada e abrangente, deve ser entendida não só como um meio para resolver problemas práticos, mas como uma expressão do nosso compromisso ético, filosófico e espiritual com a vida. A tecnologia da simplicidade, aplicada através do design inteligente e inclusivo, traduz essa síntese de saberes e valores, conectando ciência, arte, tradição e inovação numa visão holística e humanista.

Este é o desafio e o convite deste tempo: repensar a tecnologia e o progresso como instrumentos para cultivar sabedoria, beleza, equilíbrio e dignidade, antecipando um futuro onde a convivência entre pessoas, culturas e natureza se processe em harmonia. Uma civilização que se inspire na simplicidade sábia dos mestres, enriquecida pela complexidade criativa do conhecimento e pela diversidade dos saberes, poderá construir um mundo que seja simultaneamente tecnológico, humano e espiritual, capaz de acolher a totalidade da experiência e construir uma história civilizacional sólida e com sentido.

--------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

A indispensabilidade da tecnologia para a sobrevivência humana moderna está ligada à sua complexidade e abrangência.

A tecnologia simples, funcional e apropriada promove inclusão social, sustentabilidade e equidade.

António Gedeão evidencia a união entre ciência, tecnologia e poesia na experiência humana.

Fernando Pessoa, pelos seus heterónimos, confronta a fragmentação e destaca a sabedoria da simplicidade.

A síntese entre complexidade e simplicidade permite superar a fragmentação existencial.

O design, apesar de suas raízes ocidentais, é uma metodologia integradora que conecta as várias dimensões da experiência humana.

A visão descentrada reconhece múltiplos saberes e práticas tecnológicas para além do paradigma industrial hegemónico.

Os ODS contextualizam a tecnologia como instrumento para justiça social e sustentabilidade planetária.

A espiritualidade tecnológica fomenta uma relação ética, consciente e respeitadora no uso da tecnologia.


Isabel Prata Coelho